domingo, 17 de maio de 2009

Sou consciente.

Sou consciente. Sou consciente de que pouco me lembro, de todos os meus anos de vida. Falam-me que fiz coisas maravilhosas que mudaram vidas. Dizem-me que fui jovem, belo, que todos me olhavam com orgulho e que viam em mim juventude e frescura. Mas os anos levaram-ma toda e deixaram-me com as minhas rugas. Já não olham para mim com orgulho, mas com pena. Já não sou fresco, como o verão, agora sou branco e frágil, como o inverno.

Contam-me que amei profundamente. Que ela era a minha vida e a minha paixão. Por minha tristeza, não me lembro. Será que não a amei o suficiente? Dizem que o amor verdadeiro nunca se esquece. Mostram-me fotografias em que sorria, abraçava e sentia. Não me vejo nelas. Por vezes esqueço-me de quem sou. Não me conheço muito bem. E quem me conhece, fala-me sobre uma pessoa que me é estranha. Tento encaixar-me no meio da sociedade, mas as pessoas vêem-me como um ponto, e pior, fazem-me sentir como um ponto ou uma mancha.

Gostava de amar, de sorrir e conversar. De ter planos, amigos e recordações. Sou uma certeza, de que vou ser assim até ao resto da minha vida. Entristece-me saber que para mim, eu nasci há pouco tempo, não tive uma infância ou adolescência, e que não terei. Sou uma dúvida. Será que amanhã, toda a minha vida me voltará à cabeça? Será que aquele belo jovem das fotografias tornar-se-á em mim? Sou realista. Acredito que todos nascem, já nasci, é das poucas memórias, ou melhor, dos poucos episódio que eu me lembro.

Brinquei num parque com areia e pedras.

Todos crescem, no meu dedo vejo uma marca circular em branco, e sei que lá esteve uma aliança. E todos morrem, disso não me lembro, sei que não aconteceu. Não temo por isso, pelo contrário, vai dar-me uma oportunidade de renascer, e viver, e lembrar.

Tenho pessoas que se preocupam comigo, que me olham com amor e carinho. Mas eu não as conheço. Para mim, elas são como qualquer outra pela que eu passe na rua. Choram, de alegria por me verem, pai e marido, e de tristeza por eu as ver, com indiferença. Trazem-me grandes discos de vinil, dizem que eram as minhas músicas preferidas, e que querem que eu me sinta em casa. Mas eu sei que o fazem para me tentar lembrar. Dá-me pena. Gostava de olhar para elas e sentir uma grande alegria, abraçá-las, beijá-las. Mas não consigo.

Batem à porta. É o filho. Diz que é meu filho, mas eu sei que não. Não é o meu filho, mas o do homem das fotografias. Abraça-me, beija-me, chora. Eu olho para ele, espero que ele se vá, que me deixe sozinho, que não me faça sentir mal por esquecer. O telefone toca. É a nora. Pergunta por mim, se eu tomo os medicamentos, deseja-me as melhoras, desliga. Ele muito fala, conta-me a história da minha vida. As minhas casas, a minha família. Vai-se embora.

Pelas portas ouço gritos de agonia, gritos de tristeza e raiva. É a mulher. Traz-me flores, e bolos, e roupa. Ama-me mais do que tudo no mundo. Conversa comigo, ao meu lado. Não gosto de a ver, por que ela sai sempre desiludida ao ver a minha indiferença, o meu interesse nulo. Diz-me que eu lhe cantava e que dançávamos, mas é--me igual.

Vão-se embora, estou finalmente a sós. Sento-me na cadeira. Fico a dormir, à espera de não acordar em mim, mas num novo eu.

6 comentários:

  1. Consegues que as lágrimas espreitem nos meus olhos...tenho tanto orgulho em ti minha pipoquinha!! Adoro-te mais do que tudo!

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  2. Pipoquinha linda, como te disse ontem, está simplesmente, nota 10!Além de muito bem escrito, estás mais uma vez de parabéns no desenrolar e imaginar da ideia! Beijos grandes da tua madrinha, tia, amiga, whatever que te Adora muito!

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  3. A forma como escreves, a maneira como estruturas o texto, o vocabulário sempre certeiro, sem uma palavra a mais ou a menos, revelam que tu és e serás, certamente, uma enorme escritora!! Muitos parabéns por mais este texto magnífico!! Beijos enormes do teu pai que muito se orgulha de ti!!

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  4. Tenhas a bravura de não te calar.
    Tenham a coragem de te ouvir
    Sempre

    És uma Luz*:)

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  5. O teu nível de escrita já está superior ao de qualquer bazaroco universitário. Acredita!

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  6. Está mto giro mesmo! Consegues fazer com que as pessoas que lêem os teus textos se ponham na situação do relato! É umas ensação engraçada! Escreves mto bem!

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